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“Menino 23”: Como o Documentário nos Ajuda a Pensar Sobre a Questão Social no Brasil

O documentário lançado em 2016 e dirigido por Belisario Franca, retrata a investigação do historiador Sidney Aguilar Filho sobre a adoção de 50 crianças negras de um orfanato do Rio de Janeiro para a realização de trabalho escravo numa fazenda em São Paulo na década de 1930. O trabalho dos meninos era realizado na propriedade dos Rocha Miranda, família composta por empresários e fazendeiros simpatizantes do nazismo e membros da cúpula da Ação Integralista Brasileira. A análise do documentário nos fornece uma série elementos cruciais para refletirmos sobre a gênese e o desenvolvimento do capitalismo brasileiro e as peculiaridades da questão social no nosso país e como os fenômenos do passado se entrelaçam as esferas socioeconômicas e políticas da atual conjuntura.

O desenvolvimento do capitalismo, nos mais variados países, não ocorre de forma homogênea e linear, embora sejam percebidas características similares entre algumas nações. Seja em relação ao tempo ou espaço, ele opera dialogando com os componentes históricos específicos de cada região do planeta. Como assinala Florestan Fernandes (1997), em nenhuma das três distintas fases de evolução do modo de produção capitalista no Brasil1 se observa uma configuração próxima daquela que se estabeleceu nas nações compreendidas como centrais e hegemônicas. Ao contrário, o capitalismo brasileiro se estruturou como um sistema típico das nações periféricas.

É no bojo da sociedade capitalista que nasce a questão social. A expressão faz referência a exploração típica da relação capital/trabalho. Não deve ser confundida com a pobreza correspondente aos outros modos de produção, pois está intrinsecamente articulada às contradições inerentes ao capitalismo, ao antagonismo entre as classes sociais. Isto equivale a dizer que o potencial de crescimento de toda riqueza socialmente produzida ocorre, concomitantemente, ao aumento da pobreza. É importante salientar que não existem “várias questões sociais” ou uma “nova questão social”. Suas bases continuam inalteradas desde seu surgimento no capitalismo. O que se transforma ao longo da história e se modifica no espaço geográfico, articulando-se às particularidades de cada contexto social, econômico e político, denomina-se “expressões da questão social”. Nas palavras de Netto (2001):

[…] Inexiste qualquer “nova questão social”. O que devemos investigar é, para além da permanência de manifestações “tradicionais” da “quetão social”, a emergência de novas expressões da “questão social” que é insuprimível sem a supressão da ordem do capital. […]

Ao analisar o desenvolvimento do capitalismo e da questão social no Brasil é imprescindível uma reflexão acerca da exploração e dissipação dos povos indígenas e do longo período de escravidão que se estabeleceu por mais de três séculos no país. Desde o século XV, início da colonização, até os dias atuais, os povos indígenas têm seus corpos e suas terras explorados, suas crenças, hábitos, cultura são, com frequência, atacados e isso exige uma luta permanente para a garantia da própria existência.

Do início do século XV até as primeiras décadas do século XIX, para melhor atender às exigências e interesses da metrópole quanto a extração e obtenção de riquezas oirudas da colônia, povos africanos foram escravizados, dando início a um crítico capítulo de nossa história, cujas consequências ainda reverberam na sociedade brasileira contemporânea. Em consonância ao pensamento de Clóvis Moura (2014), grande parte dos estudos acadêmicos concernentes ao escravismo e ao negro no Brasil estiveram fundamentados em aspectos culturais, psicanalítico e biológicos dos povos africanos em detrimento de uma perspectiva que explicitasse o conflituoso processo de formação social e a dinâmica baseada na exploração, desumanização e coisificação do negro. Nesse sentido, as revoltas, as rebeliões e qualquer comportamento mais agressivos eram interpretados por muitos cientistas sociais e antropólogos como o produto de uma herança cultural primitiva e de um sentimento de inadequação do escravo em relação a cultura e civilidade do homem branco. A luta e resistência do escravo estavam subordinadas aos conceitos de acomodação, adaptação, aculturação e assimilação.

A particularidade do escravismo brasileiro é um outro aspecto significativo apontado por Moura: o país conciliou sua independência política com a escravidão e a abolição com a conservação do latifúndio. As contradições, afirma o autor, sempre estiveram presentes na formação da nação brasileira. Contradições que se expressavam na coexistência de uma estrutura social arcaica alicerçada no trabalho escravo e de elementos típicos de uma sociedade moderna, de um capitalismo dependente.

Florestan Fernandes (1997), afirma que o desenvolvimento do capitalismo brasileiro sempre esteve atrelado a comportamentos egoísticos e particularista da elite ao ponto de torna-se similar a dominação imperialista externa. A análise em torno da elite econômica e política do Brasil nos permite refletir acerca de importantes aspectos expostos no pelo documentário “Menino 23”. O filme expõe inúmeros pontos cruciais também observados na construção de nossa sociedade, tais como o trabalho escravo (existente mesmo após a abolição), a exploração do trabalho infantil, as profundas desigualdades socioeconômicas, as ações de uma elite egocêntrica e desprovida de qualquer projeto de nação, visando unicamente seus próprios interesses.

Os elementos supracitados podem ser percebidos através do relato de vida dos que sobreviveram ao período, como é o caso do senhor Argemiro e de Aloísio Silva (o menino 23). Eles estiveram entre os 50 meninos negros, identificados por números, retirados de um orfanato do Rio de Janeiro para realizar trabalho escravo em uma fazenda em São Paulo. Seus relatos expõem os castigos físicos que sofreram, o sofrimento causado pela ausência dos pais, o isolamento o qual foram submetidos, o abandono posterior.

A partir do aporte teórico e da leitura crítica da realidade, percebe-se que ainda a há uma grande necessidade de estudos em torno do papel exercido por índios e negros ao longo do processo histórico do Brasil. Investigações que compreendam a luta e resistência desses grupos pelo prisma de uma dinâmica societária fundamentada na escravidão, nas desigualdades, no eugenismo, no racismo, na coisificação do outro.

1 Florestan Fernandes identifica três diferentes fases no desenvolvimento do capitalismo brasileiro, são elas: fase de eclosão de um capitalismo tipicamente moderno; fase de formação e expansão do capitalismo competitivo; fase de irrupção do capitalismo monopolista. (FERNANDES:1997, p. 224)

Referências:

Documentário, Menino 23. Direção Belisario Franca. São Paulo: globo filmes, 2016. 79 min

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1997. (Capítulo 6)

MOURA, Clovis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014. (Introdução a 4 edição, páginas. 33 – 59)

NETTO, José P. “Cinco notas a propósito da ‘questão social’”. In: Revista Temporalis, n.º 03, ABEPSS, Brasília, 2001. (páginas 41 – 49)

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